Assistimos em termos mundiais a uma pandemia viral que confinou milhões, levou ao uso de máscaras, à desinfeção sistemática de tudo à nossa volta, à consciência de que estamos ameaçados na nossa existência, e não conseguimos ver o inimigo. A sensação de que poderá estar à nossa espera em tudo o que nos rodeia; desde objectos, a pessoas e ao próprio ar que respiramos. Esta sensação tende a despertar no ser humano um estado de alerta e de ameaça constantes, que se pode traduzir em sintomas de ansiedade, hiper vigilância, rituais de limpeza compulsivos, comportamentos ritualizados que visam trazer controlo e ordem à nossa vida, agora ameaçada por um inimigo invisível. Assim, assistimos ao aumento das perturbações obsessivas, ansiosas, fóbicas, paranóides.
Contudo, não somos todos iguais e nem todos desenvolvemos as mesmas estratégias de adaptação a um meio externo ameaçador. Há também quem se arrisque, e entregue o seu destino à sorte, considerando que se não há forma de se defender deste inimigo invisível, então o melhor é viver como se ele não existisse. Assistimos a um bravado perante o vírus e a existência, uma espécie de “não me renderei”, e assumem-se riscos de forma quase temerária, investindo contra o vírus e os condicionamentos que provoca, numa tentativa de o derrotar com a mera força de vontade e do pensamento.
Outros ainda há que, perante estas estratégias de fuga ou luta, ficam em sobrecarga. Perante o sentimento de impotência e sem a libertação da energia psíquica proporcionada pelos sintomas obsessivos ou fóbicos (ou pela investida na resistência às mudanças impostas pelas medidas de segurança face ao vírus), alguns acumulam energia que se vai libertar através da primeira válvula de escape que surgir.
A falta de consciencialização de como os vários factores nos afectam e de como lidamos com os medos diversos que nos assolam, os nossos próprios medos, os medos dos outros, traz desorientação.
A exposição sistemática, através dos meios de comunicação social e das redes sociais, a informações catastróficas, a avisos infindáveis, a um clima de catástrofe e apocalipse iminente, gera uma angústia e uma ansiedade que à falta de um escape adequado, conquistado através da auto consciência, vai encontrar um escape inconsciente e impulsivo.
E é assim que o vírus se mistura com o racismo e o anti-racismo. A acumulação desta energia psíquica que não tem um inimigo visível contra o qual combater, vai libertar-se assim que encontrar um escape concreto. Um escape contra o qual possa libertar toda a energia represada, todo o medo, angústia, ódio, revolta, incerteza. E de repente damos por nós num mundo polarizado em bons e maus, onde combatemos o racismo com a mesma violência que os racistas impõem. Onde combatemos o racismo com ataques à polícia, às figuras históricas, àqueles que apelam à tolerância, desumanizando-os da mesma forma que os racistas desumanizam aqueles que são diferentes por razão de pele, credo ou orientação sexual.
A necessidade de combater o vírus e as suas consequências, o confronto com a impotência perante o microscópico, levam a que muitos de nós procurem e concretizem a guerra ao vírus na primeira causa que apele ao combate violento e que permita bater, insultar, pisar o inimigo. É que perante a invisibilidade do vírus, substituímo-lo por um inimigo visível, pelo racista, pela autoridade ou pelo diferente. De repente materializamos o inimigo e sentimos que finalmente voltamos a ganhar controlo e que vamos trazer ordem ao mundo. Há um inimigo visível, um rosto, um facto, um acontecimento para combater e voltamos a sentir controlo. Falso, é certo, mas a nossa psique gosta de heurísticas!
A falta de consciência sobre os processos que vão tomando conta da nossa psique e que transbordam para um comportamento polarizado tem consequências individuais e colectivas.
Será nestes comportamentos, que não sendo patológicos representam uma falta de simbolização dos conteúdos psíquicos, que a religião teria uma palavra a dizer. A necessidade de dar sentido àquilo que não tem sentido, ao invisível sempre foi a área onde a igreja e a religião operou.
E neste tempo de pandemia temos assistido a políticos, a médicos, à ciência a explicar tudo o que sabem, e não sabem, sobre o vírus. As informações são muitas vezes contraditórias, mas todos se esforçam por oferecer uma explicação e procuram ter controlo sobre um vírus que, como todos os vírus, tem uma biologia própria e quer expandir-se. Todos procuram mostrar que a situação está controlada ou quase.
Aquilo que todos esquecem é que não controlamos nada, que o vírus não se deixa controlar com luvas e máscaras, que a vida e a morte acontecem, que a falta de sentido faz parte da vida. Mas esse não é o domínio da ciência, nem de uma sociedade que rejeita a morte e a doença como se fosse possível eliminar a morte da vida!
Faz falta o discurso espiritual na comunicação social, faz falta um discurso filosófico ou religioso que se dirija à questão do mistério que representa a vida e a morte. A componente religiosa ou espiritual tem estado arredada do palco colectivo, e isso tem custos, porque a aceitação do mistério, a consciência que nem tudo é visível, nem tudo é inteligível, que às vezes não há ordem, apenas caos, que às vezes o inominável acontece, que os acontecimentos parecem não fazer sentido, esse é o plano da filosofia e da religião. É nesta dimensão da existência que a filosofia, a religião podem dar suporte e ajudar as pessoas a integrarem a angústia, a incerteza, a falta de controlo. Sem esta dimensão, a turba reúne-se contra o primeiro Ser que represente o inimigo!
A psicoterapia também ajuda nesta integração, na compreensão dos mecanismos conscientes e inconscientes que estão em marcha e que nos dominam, qual demónios que nos segredam ao ouvido que o inimigo está ali à mão de semear, que se o eliminarmos a vida volta a ser ordeira. É necessária autoconsciência e autoconhecimento para reconhecer em nós os medos que nos dominam, para os podermos integrar e ultrapassar em vez de agirmos sem consciência, impulsivamente.
Assim, haja fé na religião, na espiritualidade, na filosofia e capacidade de nos enfrentarmos a nós mesmos na psicoterapia! Pois pode ajudar a abrir a psique ao mistério e convida ao mergulho em nós mesmos.
Amém, Namasté, Salaam Aleikum e todas as saudações que convidam a que um ser humano se reconheça no outro.
Matilde Saldanha Fernandes
Psicóloga e Psicoterapeuta